ESSE CONTO E A SUA HISTÓRIA SEM TIRAR NEM POR. FOI PUBLICADO EM DUAS EDIÇÕES DO LIVRO DAS COISAS, DA VIDA E DA MORTE E, DE CHICO ASA BAIXA, EDITADO PELA PRÊMIUS EM 2012, E SARAIVA (EDIÇÃO DIGITAL) EM 2013, DE ÓRION LIMA.
Os Herdeiros da Luz
Para ela, aquela viagem a Pernambuco foi um fracasso. Era a quarta filha e primeira que vingou, depois de sucessivos abortos que a mãe, Carminha, teve. A velha gostava de fumar cachimbo, casou muito nova, aos 13 anos, e até então, não se sabia que o tabaco era abortivo.Vivia numa época de grandes restrições para as mulheres, onde a elas estava destinada a vida doméstica do lar, o ofício de professora, funcionária pública ou opção da clausura como freira. Mesmo assim, se formou como professora de Quarta Entrância.A irmã mais nova que ela, já era freira, num convento das Carmelitas, em Recife.
E, assim, para se ver livre do carrancismo da mãe, procurou seguir o exemplo da irmã, que estava servindo a Deus.Lembra das surras que a mãe lhe dava. Sempre fora opiniosa e até mesmo petulante e atrevida. Ninguém a domava, ninguém comandava seu destino, suas vontades.
Naquele tempo, ser uma religiosa, para ela, significava se libertar do julgo materno. O pai, Seu Chiquinho, um doce de pessoa, tinha o temperamento totalmente contrário ao da mulher, Carminha, descendente de índios e portugueses.— Ela dava surra em todos nós e depois papai vinha nos consolar, pedindo que não ligássemos para as “doidices” de minha mãe!Àquelas alturas, a mãe, uma parideira nata, já tinha quatro filhos vivos, afora os treze abortos que teve e uns que morreram já grandes, de doenças desconhecidas.
Lembrava de ser discriminada porque era moreninha. Quando criança andava com uma irmã, de uns cinco anos de idade, nos braços. Branquinha de olhos azuis se chamava Antonieta. Quando ia à vacaria comprar leite a levava. A dona da vacaria sempre a insultava:
— Como pode uma mulher morena (se referindo à mãe dela) ter uma menina assim, branquinha, de olhos azuis? Deve ser filha de outro homem!
Seu Chiquinho, o pai, era moreno claro. Um ser cheio de bondade e conformismo, apesar de ser um intectual, culto, sábio mesmo. Fora criado pela família de um pároco famoso, na época.
Ela ouvia tudo calada e não contava nada para a mãe, mulher opiniosa e destemida, “de matar a cobra e mostrar o pau”, embora fosse um doce de pessoa, prestativa, indulgente, caritativa com os humildes, doentes a quem tratava e curava. Só não lhe pisassem nos calos!
— Pois bem. Essa menina de nome Antonieta, morreu com cinco anos de idade, de repente.
Lembrava, também, de um irmão que se chamava Joaquim, que morreu já quase criado, “bem grande”. A mãe nascera em Redenção e seu nome era Carminha Virgínia de Jesus, embora a chamassem de Maria do Carmo.
Descendente de índios, sua avó fora “pegada no laço, a casco de cavalo”. Seu nome, Joana, era, pode-se dizer, “uma posse” de um homem muito rico e importante naquelas bandas, filho de portugueses: Luís Fernandes de Lima, próspero agricultor, sensitivo nato, benzedor e curador”.
Luís Fernandes era conhecido por todos pela alcunha de Didim; pai de 15 filhos (entre homens e mulheres). Ele, segundo o filho mais velho, de nome Erminio, tinha poderes sobrenaturais:
— Papai curava animais com bicheira ou qualquer tipo de mal e também rezava em crianças ou adultos doentes. E só rezava uma vez, tão forte era a oração que fazia.
Erminio, irmão de Carminha, gostava de se “pabular”, pois também, como os irmãos, Chico e José, herdara os dons paranormais do velho Didim. Francisco, um dos mais novos, não herdou esses “dons psíquicos” e, sim, a longevidade do velho Didim, que adivinhou até a hora em que ia morrer.
— Cansei de ver — dizia Tio Erminio — chegar lá em casa, criador de gado desesperado. O rebanho estava morrendo e não havia explicação para o mal.
Didim se concentrava debaixo de um pé de juá. Pitando o carimbo de barro, com fumo brabo plantado por ele mesmo, mascava as folhinhas sempre verdes do juazeiro, fazia um “bolinho” com elas, e procurava uma árvore seca. Ali o bolinho de folhas era colocado enquanto balbuciava palavras que só ele entendia. “Era sua oração forte”!
— Vá, pode ir — dizia Didim.
E aconselhava que desse bastante sal aos animais e os banhasse com pó de carvão vegetal. De fato: o rebanho se levantava, engordava e os animais eram salvos.
O mesmo ocorria com bicheiras, que no verão escaldante infestava o ubre das vacas ou o lombo das cabras e carneiros. Os criadores procuravam Didim e ele fazia o mesmo ritual. Quando voltavam para casa, os bernes e bicheiras estavam sequinhos e os bichos mortos.
— Meu pai tinha o dom de se esconder dos inimigos — dizia Tio Hermínio. Rezava uma oração forte do Livro de São Cipriano e se escondia atrás do canudo do cachimbo ou de um palito de fósforo.
Essas histórias se espalhavam como vento e fortaleciam o poder de cura e prestígio de Dindim, naquelas bandas, e nas serras próximas a Redenção. Esses feitos ficaram incutidos, também, na cabeça do menino, que já sentia nas entranhas os chamados dons paranormais.
— Minha mãe, Carminha, era uma sensitiva, vidente igual a meu pai, Didim. Nessa época, falar em vidência era pecado e a igreja proibia. Tudo reforçado pelas teses do Espiritismo emergente, que atribuía a todo fato paranormal, uma ação dos espíritos dos mortos.
Isso gerava uma forte rejeição dentro do clero ortodoxo e da Igreja Católica. Só os mais doutos e preparados, como os frades franciscanos, estudiosos de Mesmer, do magnetismo animal e das ciências psíquicas, admitiam o fato do homem ter um “sexto sentido”. Todos combatiam o espiritismo emergente, mas não podiam negar os fatos paranormais, que J. B. Rhine, já pesquisava nos Estados Unidos.
Minha mãe era assim. De repente se assustava e dizia:
— Vi comadre Arturieta entrando, agora mesmo, por aquela porta.
Segundos depois, o fato acontecia. D. Arturieta batia palmas na porta e gritava:
— Ô de casa? Cadê a comadre Carminha.
Um dia, ela gritou para meu pai:
— Francisco, anote o dia, a hora e o mês!
Seu Chiquinho, já acostumado com as visões de minha mãe, pegava lápis, papel e lhe perguntava, calmo, mas com ar de apreensão:
— O que foi desta vez, Carminha?
— Minha irmã, que mora em Belém, acabou de morrer.
Alguns dias depois, chegou o telegrama dando conta da morte de Maria Virginia de Jesus, sua irmã. Minha mãe era danada, doida mesmo. Adivinhava quando ia chover e conhecia o caráter de uma pessoa só olhando para ela. Quem não caísse nas suas “graças”, tava perdido com ela.
— Ela, morena de olhos verdes! Olhos verdes... Ah ninguém pode como mulher de olhos verdes!
Assim, fugindo de tudo, seguiu viagem para tentar o noviciado. Já era Filha de Maria, queria ser freira como a irmã, mas o destino tinha escrito para ela tudo às avessas. Pouco tempo depois que chegou, sua irmã freira morreu. Daí para frente ficou muito doente, em parte chocada com tudo. Largou o convento e voltou para casa.
Como era professora foi lecionar no interior do estado, em Trairi. Não se deu bem. Vivia morrendo de dores de cabeça, atacada por enxaquecas. Quando voltou, o pai Chiquinho a advertiu:
— Não invente mais viagens. Daqui você não sai mais.
Aí, um jovem tocou seu coração e ela se apaixonou. Queria casar com ele, mas a mãe proibiu, lhe deu uma surra e o namoro acabou. Procurou se dedicar aos sobrinhos. Quando retornou de Recife, seu primeiro sobrinho estava começando a andar e já balbuciava as primeiras palavras.
O menino era vivo, observador, um primogênito como ela, e ao ouvir sua mãe chamá-la pelo nome, criou seu apelido. Um apelido para uma longa vida. Apontou o dedinho para ela e disse:
— Ti-i-nha! Tiinha!
Apontando a seguir para os “cachorros d’água” que faziam buracos na areia:
— Au-au... Apum!
“
Au-au”, cachorro e “Apum”, água! Decifrou a tia. Assim traduziu a descoberta linguística do primeiro sobrinho.
Au-au”, cachorro e “Apum”, água! Decifrou a tia. Assim traduziu a descoberta linguística do primeiro sobrinho.
Ela nunca esqueceu esse estranho diálogo, nem o dia em que foi “rebatizada” para três gerações de sobrinhos, que viriam com o correr dos anos. E por Tiinha passou a ser conhecida. Poucos na família diziam o seu nome. Preferiam chamá-la por aquele doce nome, terno, que um “molequinho” moreno como ela, resolveu apelidá-la.
José cresceu assim, acompanhando a Tia. Sofreu sua influência em quase tudo, inclusive nos ranços religiosos. O medo do pecado, do inferno e tantas outras fobias, criadas pela religião oficial, para catequizar seus fiéis.
Esses medos o iriam influenciar por quase toda vida, inclusive, na escolha do “caminho religioso”, e nas escolhas em busca da verdade. A tia vivia doente, chegou a comprar um terreno no cemitério e lá depois mandou erguer urnas mortuárias, pois pensava que logo iria morrer.
Como sua sábia mãe dizia, “Deus escreve certo por linhas tortas”, e a filha com seus medos, se afastou dos caminhos da intuição, a marca registrada da família. Jamais poderia prever que no terreno que comprou no cemitério, enterraria grande parte da família, inclusive, pai, mãe, irmãs, irmão, sobrinho, cunhado e até parentes afins. E ela vivia doente, sempre reclamando de dores na cabeça, na mão dos médicos e os remédios que não serviam para nada.
Um dia, uma vizinha, que morava na frente de sua casa, onde existia um pequeno Centro Espírita, convidou-a para frequentar umas sessões e tomar uns passes:
— Garanto que você fica boazinha de tudo isso!
E a ameaçou:
— Se não vier tomar os passes vai morrer louca!
Tiinha reagiu na hora, com a firmeza na fé que a caracterizava:
— Sou Filha de Maria (mostrando a ela a Medalha Milagrosa) e prefiro morrer louca, do que trocar a minha religião.
D.Luisinha, a espírita, calou-se e não mais a importunou. Mas durante sua longa existência, os analgésicos foram seus companheiros: remédios, exames, médicos e tomando remédios.
Professora do estado, ajudou muito na formação de mães solteiras, na Casa do Menino Deus, o mesmo fazendo no município, onde também lecionou. Fez cursos de puericultura e se tornou uma especialista em estudos bíblicos. Ensinava o catecismo às criancinhas e sua vida inteira foi voltada para servir a Deus, ajudando a quem necessitava.
Da família extremamente católica foi sempre a mais “arejada”. Como o pai Chiquinho, leu muito. Lamentava que com a morte do pai, a mãe tivesse dado sua biblioteca para amigos de prestígio. Dona Carminha tinha amigos importantes, tornara-se uma benemérita e se devotava mais aos outros do que a própria família.
Assim, mesmo sendo filha de Maria, e na tentativa de se ver livre das doenças e dos conflitos, a conselho da Amiga Dagmar, queria fazer uma consulta à paranormal de maior prestígio na época: Dona Maria Gomes.
Católica, apostólica, romana, só poderia consultar a vidente se tivesse a permissão de um pároco ou religioso de ordem superior. Fazia parte do Seminário Franciscano da Ordem Terceira, e procurou o amigo prior, Frei Pacífico, católico, franciscano, mas de grande cultura e entendimento científico.
— Poderia fazer uma consulta a Dona Maria Gomes? — fez a pergunta ao frade.
Frei Pacífico, como o nome bem designava, coçou a barba e disse:
— Pode, minha filha, pode! Não vejo nada de mal nisso!
E, ela, mostrando curiosidade sobre o tema, mais uma vez indagou:
— E o que é que ela tem, Frei? Como pode ver o destino e a vida das pessoas?
— Não há pessoas que enxergam mais do que os outros? Não há pessoas que enxergam menos? Ela é assim: vê o futuro porque tem o dom da intuição!
Saiu de lá com o coração em paz. Agora poderia visitar a vidente católica, Dona Maria Gomes, ela e a amiga Dagmar. Só não sabia que aquela inquietude estava no sangue. Fora criada entre videntes, sensitivos, como sua mãe. Só que santo de casa não faz milagres!
Quando contava esse episódio de sua vida a uma sobrinha mais nova, ela protestava. Não acreditava que Frei Pacífico tinha lhe liberado para consultar a vidente. Talvez desconhecesse que na Igreja Católica tem padres que estudam o assunto e até o usam para desacreditar o espiritismo, como Padre Quevedo, dono de uma longa obra sobre Parapsicologia.
Na sua linhagem trazia aquele “gene misterioso” que dera tanta fama a seu avô Didim e a sua mãe Carminha. Todos tinham o dom da cura espiritual e da vidência, mas não sabiam. Mais tarde surgiria em proporções bem maiores, entre outros descendentes, oculto como sempre, sobre o manto da religiosidade.
Um dia, bem mais tarde, José, seu primeiro sobrinho, conheceu Dona Maria Gomes, a mando dela. Ele ia morar no Rio e estava apreensivo com tudo. Não tinha meios para a viagem e não sabia nem onde ia morar.
Quarenta anos se passaram para que ele, um dia, dissesse à tia, o prognóstico da vidente Maria Gomes sobre sua viagem e a vida futura:
— Não vá para a Macumba não, meu filho! — disse a vidente ao pôr os olhos nele.
— Macumba? — não sabia nem o que era isso, tão jovem e ingênuo era.
Ela então disse que “ele nascera para viver nas grandes cidades, no topo, entre pessoas mais evoluídas e que sofreria muito em cidades pequenas, e se tornaria um grande homem. Ninguém podia com ele, ninguém na família poderia ser comparado a ele”.
— Nenhum dos seus irmãos chegará à unha do dedo mindinho do seu pé! — disse Dona Maria, envolta num semblante sério, com os enormes olhos fixos sobre ele.
Na entrada da sala, onde recebia os que a procuravam, havia uma imagem enorme de São Miguel Arcanjo: a lança, a espada subjugando satanás e a balança que pesa as almas. Durante horas a fio ela ensinou a ele muitas orações fortes, que lhe dariam proteção na viagem e na vida, na nova cidade onde ia morar. Ao sair para o trabalho, diga assim:
— Aqui vai Jesus e com Jesus também eu vou. Jesus queira guiar-me, Jesus queira valer-me, para as lutas eu vencer.
“Forças de Santa Maria Eterna, guardai-me, vigiai-me, protegei-me, assim como protegeu em seu sagrado ventre, o Filho do Deus Altíssimo, levando-o são e salvo de Belém a Jerusalém...”
E o presenteou ainda com um grande crucifixo de madeira, com o Cristo crucificado.
— Este crucifixo pertenceu a minha irmã, religiosa que morreu virgem, bem nova ainda — disse ao dar-lhe o presente. E copiou com sua própria mão as orações que lhe ensinara.
Do Livro “Santa Cruz de Caravaca” retirou a Oração de São Miguel Arcanjo e outras:
“Miguel à minha frente. Miguel às minhas costas; Miguel à minha direita; Miguel à minha esquerda; Miguel sobre mim; Miguel sob mim! São Miguel Arcanjo, chefe da Milícia celeste defendei-nos dos inimigos e livrai-nos de todos os perigos em nome de Jesus”.
“O Príncipe Gloriosíssimo da milícia celeste, São Miguel Arcanjo! Defende-nos na batalha e na luta que travamos contra os princípios e potestades, contra as trevas do mundo, contra os espíritos malignos que andam no ar”.
“
Vem socorrer os homens que Deus criou imortais e os formou à sua imagem e semelhança e os comprou a grande preço da tirania do demônio”.
Vem socorrer os homens que Deus criou imortais e os formou à sua imagem e semelhança e os comprou a grande preço da tirania do demônio”.
“Luta hoje, com os exércitos dos Santos Anjos, nas batalhas do Senhor, como pelejastes, uma vez, contra o capitão da soberba, Lúcifer, e seus anjos apóstatas; e não prevaleceram nem restou lugar para eles no céu. Mas aquele dragão descomunal, aquela antiga serpente, que se chama diabo e satanás, que anda enganando o orbe do universo, foi abatido e lançado por terra e seus anjos com ele”.
“Eis, pois que esse inimigo e homicida do gênero humano se encheu de arrogância. Transfigurando-se em anjo de luz, vai avançando com toda a caterva de espíritos malignos e já ocupa toda espera da terra, para apagar o nome de Deus e de seu Cristo e roubar as almas criadas para a coroa da glória imortal e despedaçá-la e despenhá-las na eterna perdição”.
“Inimigos astutos encheram de amargura e embriagaram com absinto a Esposa do Cordeiro Imaculado, a Santa Igreja: em tudo que é sagrado e precioso puseram suas ímpias mãos. No lugar em que está a cadeira do bem-aventurado São Pedro e a Cátedra da Verdade para iluminar todas as nações, puseram o trono de sua abominável impiedade”.
“Eia, pois, invictíssimo Capitão, ajuda o povo de Deus contra o exército dos espíritos malvados e dá-nos à vitória. A Igreja Santa te venera como guarda e patrono; aclama-te como defensor contra os nefandos poderes da terra e do inferno; a Ti encomendou o Senhor as almas dos redimidos, que hão de tomar assento na bem aventurada soberania”.
“Roga a Deus da Paz que esmague a satanás sob nossos pés, a fim de que não possa, de agora em diante, ter cativos os homens e causar dano à Igreja. Oferece nossas súplicas ao Altíssimo, para que logo venham ao encontro às misericórdias do Senhor e tu prendas o dragão, a serpente antiga, que é o diabo e satanás e, atado, o arrojes ao abismo, para que não mais engane as gentes...”
Estava há horas conversando com ela e o tempo parecia ter parado. Com uma pequena imagem de Santo Antônio nas mãos começou a falar sobre o Santo do “pão dos pobres”:
— Santo Antônio de Pádua era conhecido por suas proezas. Os frades o viam levitando no convento e uma vez se “bilocou” de Pádua para uma cidadezinha, para dar seu testemunho e salvar seu pai de uma acusação inverídica, que o condenaria à morte.
E Dona Maria Gomes contou pra ele a história de Santo Antônio, que conhecera em vida São Francisco de Assis:
— Santo Antônio é o protetor dos pobres, o auxílio na busca de objetos ou pessoas perdidas, o amigo das coisas do coração. Ele, como São Francisco de Assis, trocaram o conforto da vida numa família burguesa, pela vida humilde, religiosa, entre os pobres.
E continuou a vidente:
— Contam os livros que Santo Antônio nasceu em Lisboa, a 15 de agosto e 1195, sendo seu nome de batismo, Fernando. Era o filho herdeiro de D. Martinho, nobre pertencente ao clã dos Bulhões y Taveira de Azevedo.
Os primeiros oito anos de Fernando foram dedicados aos estudos. Quando resolveu optar pelo hábito, escolheu a ordem de Santo Agostinho. Nesse período de estudos nada escapou a sua aguçada percepção.
Desde os tratados teológicos e científicos às Sagradas Escrituras. Sua cultura geral e religiosa era tamanha que alguns dos colegas não hesitavam em chamá-lo de “Arca do Testamento” — disse a vidente, e abrindo um velho baú de cedro, Dona Maria Gomes retirou um livro, já bem surrado pelo tempo, que narrava a vida de Santo Antônio e começou a ler em voz alta para ele:
“Fernando preferia a solidão das bibliotecas e dos oratórios às discussões religiosas. Bem, pelo menos até um grupo de franciscanos cruzar seu caminho. O encontro, por acaso, numa das ruas de Coimbra marcou-o para sempre.
Eles eram jovens diferentes, que traziam nos olhos um brilho desconhecido. Seguiam para o Marrocos, na África, onde pretendiam pregar a Palavra de Deus e viver entre os sarracenos. A experiência costumava ser trágica. E daquela vez não foi diferente. Como a maioria dos antecessores, nenhum dos religiosos retornou com vida.
Depois de testemunhar a coragem dos jovens frades, Fernando decidiu entrar para a Ordem Franciscana e adotar o nome de Antônio, numa homenagem à Santo Antão.
Disposto a se tornar um mártir, partiu para o Marrocos, mas logo após aportar no continente africano, Antônio contraiu uma febre, ficou tão doente que foi obrigado a voltar para a casa. Mais uma vez, o destino (os céus) lhe reservava novas surpresas.
Uma forte tempestade obrigou seu barco a aportar na Sicília, no sul da Itália. Aos poucos, recuperou a saúde e concebeu um novo plano: decidiu participar da assembleia geral da ordem em Assis, em 1221, e deste modo conheceu São Francisco, pessoalmente.
É difícil imaginar a emoção de Santo Antônio ao encontrar seu mestre e inspirador, um homem que falava com os bichos e recebeu as chagas do próprio Cristo. Os escribas da época nada registraram sobre este momento tão particular da história do Cristianismo.
Sabe-se apenas que os dois santos se aproximaram mais tarde, quando o frei português começou a realizar as primeiras pregações. Santo Antônio era um orador inspirado. Suas pregações eram tão disputadas que chegavam a alterar a rotina das cidades, provocando o fechamento adiantado dos estabelecimentos comerciais.
De pregação em pregação, de povoado em povoado, o santo chegou a Pádua. Lá, converteu um grande número de pessoas com seus atos e suas palavras.
Foi para esta cidade que ele pediu que o levassem quando seu estado de saúde piorou, em junho de 1231. Santo Antônio, porém, não resistiu ao esforço e morreu no dia 13, no convento de Santa Maria de Arcella, às portas da cidade que batizou de ‘casa espiritual’. Tinha apenas 36 anos de idade.
O pedido do religioso foi atendido dias depois, com seu enterro na Igreja de Santa Maria Mãe de Deus. Anos depois, seus restos foram transferidos para a enorme basílica, em Pádua. O processo de canonização de frei Antônio encabeça a lista dos mais rápidos de toda a história.
Foi aberto meses depois de sua morte, durante o pontificado de Papa Gregório IX, e durou menos de ano.
Graças a sua dedicação aos humildes, Santo Antônio foi eleito pelo povo o protetor dos pobres.
Transformou-se num dos filhos mais amados da Igreja, um porto seguro a qual todos — sem exceção — podem recorrer. Uma das tradições mais antigas em sua homenagem é, justamente, a distribuição de pães aos necessitados e àqueles que desejam proteção em suas casas.
Transformou-se num dos filhos mais amados da Igreja, um porto seguro a qual todos — sem exceção — podem recorrer. Uma das tradições mais antigas em sua homenagem é, justamente, a distribuição de pães aos necessitados e àqueles que desejam proteção em suas casas.
Homem de oração, Santo Antônio se tornou santo porque dedicou toda a sua vida aos mais pobres e ao o serviço de Deus.
Diversos fatos marcaram sua vida, mas um em especial: a devoção a Maria. Em sua pregação, a figura materna de Maria estava presente. Santo Antônio encontrava em Maria, além do conforto, a inspiração de vida.
O seu culto tem sido preservado ao longo dos séculos, objeto de grande devoção popular. É difundido por todo o mundo através da miscigenação e de outras culturas (nomeadamente Afro-brasileiras e Indo-portuguesa).
Santo Antônio tornara-se assim, um dos santos de maior devoção de todos os povos, e sem dúvida, o primeiro português com projeção universal.
— Santo Antônio de Lisboa ou de Pádua? — indagou José.
— De Lisboa ou de Pádua — disse Dona Maria Gomes, ele é por excelência o santo “milagreiro”, “casamenteiro”, do “responso” e do Menino Jesus. Padroeiro dos pobres é invocado também para o encontro de objetos perdidos. Sobre seu túmulo, em Pádua, foi construída a basílica a ele dedicada.”
E deu para ele de próprio punho um dos seus responsos:
“Afasta-te cruel inimigo, eterno vencido do Leão de Judá! Em mim, na minha vida, nos meus negócios, existe a Cruz de Cristo, e nada podes contra os servos de Santo Antônio de Pádua”.
Assim terminou aquela longa consulta. E quantas verdades tinham sido ditas ali? O responso de Nossa Senhora e uma série de orações católicas, de grande virtude, despertaram nele a fé no poder ilimitado de Deus, através dos seus santos, anjos. Já não via, há muito tempo, com bons olhos a igreja, que falava tanto em Jesus, mas não seguia seus mandamentos, palavras ou exemplos.
E começava ali, sem que a vidente soubesse, a previsão que fizera. A iniciação dele, numa crença sincrética, onde Deus, Jesus, o Divino Espírito, Maria, Anjos e Santos, seriam vistos pela ótica dos negros escravos que vieram da África, e viam no Divino Pai Eterno o seu “Olorum”, no Divino Espírito Santo, “Ifá”; em Jesus, “Oxalá” e Maria, “Iemanjá”, e assim por diante.
A vidente só errou na terminologia, por causa do preconceito religioso. Poderia ter dito: “não entre na Umbanda” , que aqui , por ignorância e despreparo, sempre foi confundida com a “Macumba”, a prática do mal. Tudo por culpa do fanatismo religioso e da própria maldade humana, que confunde a Teurgia (poder da luz Divina), com a Goércia (poder das trevas).
Culpa de alguns fiéis e prelados, que macularam a Santa Igreja de Jesus, entregue por ele a Pedro.
Conturbada por “guerras santas”, escândalos sexuais, e perseguições religiosas. Fogueiras da Santa Inquisição, mortes, massacres da Idade Média, e na modernidade, cedendo espaço para seus ferrenhos inimigos: os protestantes seguidores de Martin Lutero, que agora se intitulam de “evangélicos”.
A tia ouviu tudo calada. Ela mesma, muitas vezes, usou a sabedoria de Dona Maria Grande, para aliviar seus conflitos religiosos. Lembrava do pai, que fora criado pela família Menescau, para onde veio pequeno estudar.
O seu mentor espiritual e professor foi o padre Leorne Menescau, doutor, formado em Roma. O pai dela, Seu Chiquinho, quando criança, era conhecido como “Chico do Padre”. Um dos descendentes da família Pontes, cuja raiz viera de dois irmãos portugueses que migraram para o Brasil e se radicaram, inicialmente no Ceará. Um se radicou no Norte, (Belém ou Manaus), e o outro fincou raízes em Maranguape.
O pai de Francisco (Chiquinho) era Luiz Gonzaga de Pontes e a mãe, Lourença Alves Bezerra, esta conhecida como mãe Dindinha. Lembra a famosa Dona Maria Pontes, uma matriarca que mandava em Maranguape. Dali veio Chiquinho para estudar. Tudo isso continuava vivo na mente da tia, que já passara dos 94 anos e tendo uma memória de “elefante”.
Nos seus 94 anos bem vividos, ainda lúcida — com uma memória de fazer inveja aos mais novos, lembrava que os Pontes sempre foram professores, intelectuais, escritores e que o surgimento das duas famílias – a “Pontes e a Ponte” – se dera por questões financeiras, pois as duas tinham a mesma origem: Portugal.
— Os que retiraram o “s” do nome foram os que ficaram ricos, disse a Tia. Queriam fazer uma diferença na árvore genealógica. Mas só existe uma família Pontes, afirmava convicta.
No auge de uma vida, lembrava dos tempos sofridos, lembrava a irmã mais nova, sempre ligada ao dinheiro e dona de uma vontade de ferro. Tudo que queria conseguia. E da “antevisão” do pai, ao saber que estava desenganado e muito doente, pediu ao prefeito Cabral, que colocasse a filha mais nova no lugar dele, fato inédito, mas que ele conseguiu.
Lembrava da morte do pai, que suava muito quando morreu. Teve que pedir ao médico que lhe fizesse uma incisão nos pulsos. Desconfiava que ele estivesse vivo, em sono cataléptico. E da mãe perturbada, revoltada com as atitudes, nada tradicionais, da filha mais nova e de seu namoro com um homem casado e separado da mulher..
Do irmão Hermenegildo, que também morreu novo: outro dos desgostos da mãe Carminha, porque ele se casou e adotou a religião da esposa, a presbiteriana. Hermenegildo era barbeiro, viveu segregado da família, mas mesmo assim, vez por outra os procurava. Tinha uma índole santa, saíra ao pai, Chiquinho, também humilde e manso, sempre pregando a palavra de Jesus.
Lembrava do namorado da irmã, um político influente, “um cabra safado”, cujo único bem que fez ao povo foi pagar os salários atrasados dos barnabés, quando foi Secretário de Finanças da Prefeitura.
— Um dia eu ia passando e ele se preparou para me beijar. Mamãe pegou um chinelo e partiu pra cima dele. Ia bater com o chinelo na cara dele e só não bateu porque ele recuou.
Disse a Tia, envolta num clima de revolta e continuou:
— Era um velho safado, depravado. Causou um enorme mal a uma criancinha, que levava sempre, em seu carro, para o colégio. Um dia colocou a menina no colo e a menina deu aquele grito. A criança chorava dia e noite, e os pais tiveram que contratar um psiquiatra e a mandá-la para o Rio, para tentar esquecer o trauma. Agora ela já é adulta e ainda não esqueceu o estupro. Noutro dia me visitou e não pôde deixar de lembrar tudo que passou, por causa daquele velho.
Nessa época a mãe sofria muito com o namoro da irmã, que acontecia em sua própria residência. A mulher legítima do tal político saiu de casa e ele ficou livre para pôr em prática suas taras.
A irmã resolveu criar uma criança, “tudo a troco de dinheiro e benefícios e favores”, para a mãe legítima da criança. A menina, já grandinha, recebia presentes e mais presentes, caríssimos, do velho safado.
Por isso a tia vivia doente. Não gostava da casa onde sua mãe as criou e onde, depois da morte da mãe, continuou morando com a irmã.
Tinha crises de asma incríveis e foi aconselhada por um médico da família, a mudar de casa. Comprou então uma casinha na Cidade 2000. Ali morou muitos anos, mas não tinha sossego, e voltava de lá. Alugava casa e voltava a morar com a irmã, mesmo a contragosto.
O médico amigo da família a aconselhara a morar com a irmã casada, com quem tinha mais afinidade. Mas a essa época, o marido dela bebia muito e não daria certo. Também a casa era pequena, a irmã tinha nove filhos e não havia um quarto separado para ela.
E por incrível que pareça, depois da morte da irmã, muitos anos depois de tudo isso ocorrer, passou a morar com as sobrinhas na casa do cunhado. Ele agora, um santo homem. Não faltava às missas, comungava e morreu velhinho, em paz com Deus, os filhos e o mundo.
O cunhado, para implicar com ela, a apelidou de “a tigre”. Uma maneira irônica de expressar o apreço por aquela “tigresa” braba e voluntariosa.
Tinha tudo que detestava na mãe, inclusive o carrancismo, se lhe pisassem nos calos. Afora isso, uma meiga de pessoa, alma boa, temente a Deus, caridosa, sempre preocupada com os sobrinhos e com outras pessoas.
Assim viveu a maior parte de sua sofrida vida, sempre catequizando crianças, cuidando de mães solteiras, ajudando pessoas. Sempre devota da Virgem Maria, a Imaculada Conceição. Quando se aposentou por causa do glaucoma, que quase a cegou de vez, ganhou a casa que comprara, pois assim constava nos “Estatutos da Terra”.
Anos depois, vendeu-a para o sobrinho que voltava de vez do Rio e com o dinheiro da venda, colocou o cristalino nos dois olhos e ajudou muita gente da família, já que fizera um voto de pobreza e tudo que ganhava distribuía com quem necessitasse da sua ajuda.
Deus sempre foi muito generoso com ela. E a prova maior disto era a longevidade, uma graça para os que são úteis e amam a vida. Assim já marchando para os cem anos, quando o sobrinho mais velho ligava pra ela, dizia:
— Estou viva!
E sempre teve um senso de humor enorme. Recordando fatos do passado, de onde vinha resistindo às doenças a três gerações, contou que um médico lhe disse que tinha uma enorme pedra na vesícula, e ela não perdeu tempo:
— Dr., essa pedra tem a idade de meu sobrinho mais velho: 65 anos!
E sorria, sorria. E dos remorsos, um confessou, naquela tarde amena, curtida a café, biscoitos e torradas:
— Noutro dia um sobrinho me perguntou: Tiinha, o que acha do meu padrinho?
O sobrinho era católico extremado, se referia ao velho rico das histórias do passado.
— Ele está no inferno! — disse.
— Meu padrinho no inferno?
— Sim, no inferno! — confirmou.
Lembrava as atrocidades que o “velho safado”, como o chamava sua mãe, cometera. Na sua licenciosidade ele não media esforços para conseguir seus “pecaminosos intentos”...
E depois, arrependida:
— Eu já pedi perdão a Jesus por ele. Jesus só não perdoou a Judas, o apóstolo que o traiu e entregou aos romanos, porque Judas não quis.
E citando os Evangelhos:
— Vai, fazes logo o que tens que fazer, mas seria melhor que nunca tivesses nascido.
Desde criança não tinha uma tarde tão amena e feliz assim. Ali, lembrando o passado, sua face se iluminara. As formigas vermelhas mordiam-lhe os pés e ela nem reclamava. Esqueceu a merenda, estava imersa na parte viva de sua vida — a memória — e todos estavam embevecidos com aquelas histórias de dor, verdades que muitos preferiam esquecer e ocultar.
— Você vai viver cem anos, meu filho!
— Deus te ouça, tia! — disse ele.
Sabia que aquele desejo também era para ela. Mostrara-se por inteiro. Sem censura rasgou a máscara, deixando aparecer a outra face da medalha. E ninguém melhor do que ela, e só ela, poderia recordar e reviver, realmente, essa história de amor e de dor. Ambos eram primogênitos de uma linhagem e traziam a marca dos “herdeiros da luz”.
E sem recriminações ou julgamentos, se despediu da tia. O sol já descia rumo ao poente. Recordou as palavras de Jesus, que aprendera bem cedo, num pequeno evangelho que ela mesma lhe dera de presente, quando ainda era aquele menino tímido:
“Conhecerás a verdade e a verdade te libertará!”
ÓRION LIMA (JORNALISTA-ESCRITOR)





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